Casos de sucesso em conservação de fauna dependem de ações conjuntas com comunidades locais e cientistas.
O desmatamento e a caça ilegal de animais silvestres estão entre as principais ameaças da perda da biodiversidade no mundo. A Mata Atlântica é uma das principais floretas tropicais do planeta e que ela reúne um dos maiores número de animais endêmicos e ameaçados do mundo. Mas o desmatamento e a fragmentação desse bioma faz com que, hoje, muitas dessas espécies estejam nas principais listas globais de espécies ameaçadas.
Entre o estado do Paraná, o sul de São Paulo e o norte de Santa Catarina, ainda é encontrado o maior fragmento dessa rica floresta e um mosaico de importantes Unidades de Conservação. Nessa região, chamada de Grande Reserva Mata Atlântica, existem diversas iniciativas para a conservação de espécies extremamente raras e ameaçadas. Esse território, com quase três milhões de hectares de áreas naturais não fragmentadas, é o último refúgio para essas espécies nativas da Mata Atlântica.
Parque Estadual Pico Marumbi, na região da Grande Reserva Mata Atlântica. Foto: Ricardo Borges
A região também reúne diversos atrativos naturais, culturais e históricos. A Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), com apoio de parceiros, vem contribuindo, desde 2018, com a consolidação da iniciativa Grande Reserva Mata Atlântica. Ela tem o propósito de promover o conceito de “produção de natureza”, que considera a integridade ecológica e a convivência harmônica entre sociedade e natureza como a base para uma economia inteligente, moderna e restaurativa.
Reservas SPVS. Foto: Reginaldo Ferreira
Com quase quatro décadas de atuação, a SPVS consolida um programa de conservação de algumas espécies da fauna da Mata Atlântica, por meio da implementação de projetos de proteção, manejo e monitoramento de espécies ameaçadas e endêmicas, ou seja, que só existem naquela região ou naquele bioma.
Conheça alguns desses projetos executados pela SPVS, no território da Grande Reserva Mata Atlântica:
A SPVS realiza ações voltadas à conservação do papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis) e seu habitat com ações de pesquisas, manejo, monitoramento da espécie e educação para conservação desde 1998 no Paraná e a partir de 2013 em São Paulo. A partir do monitoramento de ninhos naturais e da utilização de ninhos artificiais de madeira e de PVC como estratégia de manejo, o projeto já possibilitou o acompanhamento do nascimento de 1.956 filhotes. Desse total, voaram dos ninhos 1.094 papagaios.
A partir de 2003, o projeto passou a realizar censos populacionais no litoral do Paraná e, em 2013, foi feita a primeira contagem simultânea nos estados do Paraná e de São Paulo, quantificando o número de indivíduos em sua principal área de ocorrência. Atualmente, a estimativa populacional do papagaio é 9.112 indivíduos em toda sua área de ocorrência.
Todos esses esforços resultaram na mudança de categoria de conservação do papagaio-de-cara-roxa na lista de espécies ameaçadas. Em 1998, a espécie era classificada como “Em Perigo” pela IUCN, a Lista Internacional de espécies ameaçadas, mudando a categoria para “Quase Ameaçada” em 2017. Isso significa que as ameaças sobre a espécie foram amenizadas, mas ainda são necessárias ações de manejo para conservação. Sem, portanto, o trabalho de fornecimento de ninhos artificiais e monitoramento da espécie, o sucesso reprodutivo do papagaio pode ser comprometido em curto prazo, uma vez que o corte seletivo de árvores de grande porte causou historicamente a baixa disponibilidade de ocos naturais para ninhos. A melhora do status de conservação é uma meta para todas as espécies ameaçadas, mas cautela para as particularidades regionais e locais são essenciais para a manutenção dessas espécies no longo prazo.
O projeto ainda atua fortemente com a Educação para a Conservação da Natureza por meio de palestras para estudantes e cursos de formação para professores nos municípios das áreas de ocorrência da espécie. No início do projeto, foram contratados dois moradores da região do Paraná, que, até hoje, atuam com pesquisadores no monitoramento da população e na proteção dos ninhos ao longo de todo o período reprodutivo da espécie, que vai de setembro a fevereiro todos os anos.
Papagaio-de-cara-roxa. Foto: Zig Koch
Papagaio-de-peito-roxo
Com as lições aprendidas com o sucesso das ações de conservação do papagaio-de-cara-roxa, a equipe da SPVS iniciou em 2018 ações de conservação do papagaio-de-peito-roxo (Amazona vinacea) nos estados do Paraná e São Paulo.
O papagaio-de-peito-roxo está classificado na categoria “Em Perigo” na lista internacional de espécies ameaçadas, e possui uma população de aproximadamente 5 mil indivíduos em toda a sua área de distribuição. A SPVS iniciou o monitoramento da espécie no Parque Estadual do Rio Turvo, em São Paulo. Nessa Unidade de Conservação, foi feito o monitoramento populacional, reprodutivo e ações de Educação para a Conservação. Desde 2018, a instituição monitorou 14 ninhos naturais. Seis filhotes foram monitorados e anilhados. Com parceria da equipe do Parque Estadual de Campos do Jordão foi possível monitorar e anilhar quatro filhotes em dois ninhos: um natural e um artificial.
No Paraná, no município de Bocaiúva do Sul, a equipe da SPVS já colaborava com a equipe da Associação Amigo do Meio Ambiente/Programa Nacional do Papagaio-peito-roxo na contagem mundial da espécie, monitorando um dormitório desde 2014. A partir de 2018 a SPVS vem acompanhando esse dormitório sazonalmente e buscando por novos dormitórios e sítios reprodutivos nesse município e também em Campina Grande do Sul. Para 2023, a expectativa é avançar para outros municípios, como Campo Largo, Campo Magro e outros municípios da região metropolitana de Curitiba.
Além disso, a SPVS realiza ações de Educação para a Conservação nos municípios onde atua, além de participar de conselhos das unidades de conservação. Também há instalação de ninhos artificiais em locais onde a equipe identifica a falta de cavidades naturais para a reprodução dos papagaios.
Os papagaios são alvos constantes de tráfico de animais silvestres, então, é necessário o monitoramento contínuo das áreas de reprodução e a conscientização da população em geral sobre o comércio ilegal de espécies ameaçada. O papagaio-de-peito-roxo, além de sofrer com o comercio ilegal, ainda tem a grande ameaça da destruição das Florestas com Araucárias, o ecossistema associado ao bioma Mata Atlântica, com a qual ele possui uma estreita relação.
Papagaio-de-peito-roxo. Foto: Jonas Kilpp
O mico-leão-da-cara-preta, ou mico-caiçara (Leontopithecus caissara), oficialmente descrito em 1990, é uma das espécies de primata mais rara e ameaçada do mundo, devido à sua baixa densidade populacional. Existem aproximadamente 400 indivíduos na natureza, e sua distribuição é bastante restrita. A classificação dessa espécie na lista internacional de espécies ameaçadas é de “Criticamente Ameaçada” desde 1996. Em 2018, a SPVS junto com outras instituições, retomaram os esforços de conservação da espécie. A partir de 2020, a iniciativa se transformou no Programa de Conservação do Mico-leão-da-cara-preta, liderado pela SPVS. O objetivo do programa é minimizar as ameaças atuais, promover integração entre instituições ambientais que atuam na região, valorizar as unidades de conservação da área de distribuição do mico e realizar ações de monitoramento da espécie e seu hábitat, pesquisas, comunicação e educação ambiental.
Desde o início, o projeto buscou realizar ações de planejamento integrado com instituições e colaboradores das mais diferentes áreas, como ecologia, veterinária, comunicação, gestão de unidades de conservação e fiscalização, por exemplo.
Anualmente, é realizada uma reunião de planejamento do programa do mico-leão-da-cara-preta com os mais diversos atores e colaboradores para avaliar e discutir as ações que estão sendo desenvolvidas e contribuir com a conservação da espécie, traçando metas e estratégias de conservação para ela. Durante a primeira reunião, em 2019, foram destacadas três principais ameaças: ausência de fluxo gênico entre as populações do mico, pressão sobre as áreas naturais onde ele ocorre (dentro e fora das Unidades de Conservação) e perda do habitat e risco da febre amarela e demais doenças que o acomete, além das mudanças climáticas. Após identificar as principais ameaças, o grupo propôs atividades para minimizar as ameaças.
A busca por grupos de mico está entre as mais desafiadoras atividades que a SPVS desenvolve, já que a detecção da espécie na natureza é muito difícil. As buscas por eles são feitas nas trilhas e estradas na região do Ariri (Parque Estadual Lagamar de Cananéia – SP) e no Parque Nacional do Superagui (Guaraqueçaba – Paraná), utilizando técnicas de playback, câmeras traps e buscas ativas, além de testes com gravadores autônomos. Até agora, foram mapeados 12 grupos de micos nas duas Unidades de Conservação e entorno. Foram também realizados pela SPVS eventos sobre Saúde e Biodiversidade e Vigilância Sanitária em Cananéia. Ainda na questão sanitária, foi promovida a análise de risco de doenças, avaliando o risco de febre amarela para a conservação do mico. Por se tratar de uma espécie endêmica, com população reduzida e criticamente ameaçada, o risco da febre para essa população é muito alto.
Não existe uma população ex situ do mico, ou seja: não há nenhum mico em cativeiro, o que pode vir a agravar o cenário de conservação da espécie. Para debater essa situação, foi realizada em 2021 uma oficina de Avaliação para manejo ex situ do mico-leão-da-cara-preta. Uma equipe com integrantes da SPVS, do ICMBio, CPB (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros) e AZAB (Associação de Zoológicos e Aquários do Brasil)foi criada para coordenar o planejamento detalhado antes do início do manejo ex situ. É fundamental os estudos que estão sendo realizados in situ (na natureza) para trazer mais informações populacionais da espécie.
Mico-leão-da-cara-preta. Foto: Zig Koch
Harpia
O mais novo projeto de conservação de fauna da SPVS envolvendo uma espécie ameaçada é o Projeto de Conservação Integrada da harpia (Harpia harpyja) no estado do Paraná.
A harpia (Harpia harpyja) é uma das maiores e mais poderosas águias do mundo. No Brasil, atualmente, é encontrada na região amazônica e em alguns trechos de Mata Atlântica. Por precisar de grandes territórios para obter alimento e se reproduzir com sucesso, as populações precisam da existência de grandes áreas florestais conservadas. Sendo assim, a fragmentação de habitat, a caça de suas principais presas e o corte seletivo de grandes árvores emergentes são as principais ameaças que a espécie enfrenta. Seu status de conservação, tanto em nível internacional (IUCN, 2021) como na lista brasileira, está categorizada como “Vulnerável”, de acordo com o ICMBio, e “Criticamente em Perigo” no estado do Paraná (Decreto nº11797/2018). A necessidade de um programa de conservação integrada para a harpia no estado do Paraná, portanto, é urgente.
A primeira etapa do projeto foi concluída em janeiro de 2023. Depois de dois anos e meio, muitos esforços voltados para a conservação dessa emblemática ave foram feitas. Foi realizado um diagnóstico da situação atual da espécie no território da Grande Reserva Mata Atlântica, que envolveu uma avaliação da vegetação e do ecossistema nos principais remanescentes de vegetação do Paraná e buscas ativas da espécie e de suas principais presas.
Diversas reuniões técnicas com os principais especialistas em rapinantes e translocação, gestão territorial e fiscalização foram realizadas, para discutir estratégias de conservação da harpia e das áreas naturais paranaenses. Dois grandes eventos se destacaram nessa primeira etapa do projeto: dois workshops em que foram discutidas a possibilidade e a viabilidade de realizar um experimento de translocação da harpia no território da Grande Reserva Mata Atlântica e no Parque Nacional do Iguaçu.
Foram pontuados benefícios e riscos que essa estratégia de conservação traria para a espécie e as diretrizes para a translocação da harpia no estado do Paraná. Graças à parceria entre a SPVS e Itaipu Binacional – local de maior sucesso reprodutivo de harpia em cativeiro do mundo – esse desafio pode ser tornar realidade nos próximos anos. Rever uma ave topo de cadeia voando pelas florestas do Paraná traria a certeza de que as áreas onde ela se manifestaria estão mais bem conservadas.
A raridade do mico e da harpia na natureza traz o desafio de novas técnicas de monitoramento e estratégias ousadas para a conservação dessas espécies.
Harpia. Foto: Alexandre Marchetti – Itaipu Binacional
A importância do trabalho integrado
Para Roberta Boss, técnica dos projetos de fauna da SPVS, o compartilhamento de conhecimentos e o desenvolvimento de monitoramentos de longo prazo com espécies ameaçadas e endêmicas da fauna, trarão resultados fundamentais para a qualidade da gestão das Unidades de Conservação na relação com as comunidades locais, já que a SPVS envolve moradores locais nas ações de monitoramento e compartilha com eles também todos os resultados.
“Todos os projetos de conservação de fauna da SPVS contam com uma grande rede de colaboradores para o sucesso das ações. Contamos com o apoio de pesquisadores, professores, gestores de unidades de conservação, policiais, alunos, servidores de órgãos ambientais municipais, estaduais e federais e de fiscalização. Além disso, todos os projetos contribuem e implementam ações dos Planos de Ação Nacional para a Conservação de Espécies Ameaçadas (ICMBio), os chamados PAN’s”, conclui.
Para saber mais sobre os trabalhos da SPVS, acesse: www.spvs.org.br.
Reserva Natural Guaricica, uma das três reservas da SPVS, localizadas no litoral do Paraná. Foto: Reginaldo Ferreira
Reportagem: Claudia Guadagnin