Já são mais de 1.800 Reservas Particulares do Patrimônio Natural que, juntas e “voluntariamente”, conservam no Brasil mais de 800 mil hectares de áreas naturais e biodiversidade para sempre
Estamos num cenário mundial de perda de biodiversidade. Conforme o Relatório Planeta Vivo 2022, publicado pela ONG WWF, a humanidade está usando o equivalente a 1,75 vezes o que a Terra pode sustentar para manter nosso modo de vida e os ecossistemas não conseguem acompanhar. De acordo com a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), 75% das terras e 66% dos oceanos do planeta já foram alterados pela atividade humana e muitos serviços ecossistêmicos estão desaparecendo.
Vale ressaltar aqui que a perda de biodiversidade não se restringe apenas a questões ambientais, mas envolve as econômicas, de desenvolvimento, segurança, social, moral e éticas também. O Brasil, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), abriga entre 15% e 20% da diversidade biológica do planeta, sendo o uso sustentável de recursos naturais um fator crítico para gerações atuais e futuras do país e do mundo.
Viver em um meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de todo brasileiro. A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece em seu Art. 225 que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
A implementação de uma política nacional de unidades de conservação no Brasil firmou-se ao longo dos anos, culminando com a Lei nº 9.985, de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), definindo várias categorias de unidades de conservação, divididas em dois grupos: as Unidades de Proteção Integral (Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural e Refúgio da Vida Silvestre); e as Unidades de Uso Sustentável (Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva da Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particular do Patrimônio Natural). A criação do SNUC foi motivo de orgulho a todos os brasileiros, pois demonstrou que o país optou por dar prioridade a preservação do meio ambiente.
Entretanto, apesar da existência de um sistema de unidades de conservação para a manutenção da biodiversidade, salvo honrosas exceções, os governos federal, estadual e municipal enfrentam desafios históricos que os impedem atingir seus objetivos. A lista é grande e inclui a regularização fundiária, a falta de recursos humanos e financeiros, bem como de planos de manejo e conselhos gestores, além de ameaças como o desmatamento, a caça e incêndios.
Mas há motivos de celebração. É crescente a criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural-RPPNs, cuja função é essencial para a sociedade, pois contribuem para o aumento das áreas protegidas em locais estratégicos para o meio ambiente. Segundo dados da Confederação Nacional de Reservas Particulares do Patrimônio Natural – CNRPPN, já são mais de 1.800 RPPNs que, juntas e “voluntariamente”, conservam no Brasil mais de 800 mil hectares de áreas naturais e biodiversidade para todo o sempre.
Foto: Zig Koch
É importantíssimo destacar aqui o papel dos proprietários(as) das RPPNs. Fruto de um ato individual e voluntário, a criação de RPPNs é uma manifestação de membros da coletividade que assumem publicamente o compromisso de conservar a natureza para as gerações presentes e futuras, visto que a criação de uma RPPN é irreversível, ou seja, uma vez que uma área se torna uma RPPN, embora o direito de propriedade se mantenha, o status de área protegida privada é perpétuo. E são essas pessoas, físicas ou jurídicas, motivadas em sua maioria por questões conservacionistas, que demonstram uma capacidade de iniciativa que as diferencia dos demais, e merecem o reconhecimento e apoio de todos.
Tal reconhecimento e apoio, portanto, é realmente necessário, pois em seu dia a dia as RPPNs enfrentam problemas semelhantes aos das demais unidades de conservação públicas. Mas, diferentemente destas, a responsabilidade por solucionar os problemas fica ao encargo do proprietário. E isso custa dinheiro.
Note-se que, dentre os benefícios concedidos às RPPNs, de concreto o proprietário conta com a isenção do Imposto Territorial Rural (ITR) referente à área. Já os demais benefícios previstos por lei, como a prioridade na análise dos projetos pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA); a preferência na análise de pedidos de concessão de crédito agrícola junto às instituições oficiais de crédito; e a possibilidade de formalizar parcerias com instituições públicas e privadas na proteção, gestão e manejo da área, dependem de variáveis que não estão exclusivamente sob o seu controle.
No esforço de conseguir a viabilidade financeira da RPPN, os proprietários têm buscado diversificar as atividades, explorando vários tipos de turismo de natureza (ecoturismo, rural, de aventura, etc.), além de outras atividades de uso sustentável como educação ambiental, pesquisa científica, artesanato, apicultura, agricultura orgânica, etc. Tais atividades se enquadram no contexto da “Produção de Natureza”, termo que se refere a um modelo de desenvolvimento que favorece a convivência entre atividades econômicas com a preservação dos ecossistemas, tendo por base as áreas protegidas como ativo para o benefício de comunidades que vivem no seu entorno, especialmente, por meio do ecoturismo.
Entretanto, são atividades cuja realização demanda saberes específicos, que nem sempre são da expertise dos proprietários. Muitas vezes sem os recursos necessários para empreendê-las, estes se veem obrigados a adiar sua implantação, permanecendo com dificuldades no custeamento da gestão da RPPN.
Resumindo, os proprietários deram o grande e importantíssimo passo na criação das RPPNs, um ato individual e voluntário que beneficia toda a comunidade e as gerações futuras, mas precisam de apoio para que esses benefícios sejam efetivos.
Não é demais lembrar que as RPPNs são muito importantes no contexto da Agenda 2030 e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), tendo especial relevância em sua dimensão ambiental, notadamente nos ODS 6 (Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos), 13 (Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos) e 15 (Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade), bem como na dimensão social, através do ODS 3 (Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades).
Também há um fato que poucos conhecem. A Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (lei Nº 14.119/2021) considera como serviços ambientais as atividades individuais ou coletivas que favoreçam a manutenção, a recuperação ou a melhoria dos serviços ecossistêmicos, sendo estes os benefícios relevantes para a sociedade gerados pelos ecossistemas, em termos de manutenção, recuperação ou melhoria das condições ambientais. Vários estados do país contam com o ICMS Ecológico, uma modalidade de pagamento por serviços ambientais que consiste no repasse de uma fração adicional à cota de 25% de ICMS aos municípios que atendam a determinados critérios ambientais estabelecidos em leis estaduais, constituindo-se numa ferramenta do poder público estadual brasileiro para incentivar a adoção de práticas ambientalmente adequadas pelos munícipios. Nesse contexto, a existência das RPPNs é um fator de incremento de recursos provenientes do ICMS Ecológico para as prefeituras, proporcionando um ingresso muito bem vindo aos tesouros municipais.
Movimentos de estímulo à criação de novas RPPNs vêm crescendo
Felizmente, começam despontar iniciativas em gestões municipais que visam apoiar as RPPNs existentes e incentivar a criação de novas unidades de conservação particulares.
Antonina, uma simpática cidade situada no coração da Grande Reserva Mata Atlântica, o maior remanescente contínuo desse bioma no planeta, vislumbrou uma oportunidade de apoiar as RPPNs e ao mesmo tempo aumentar o recebimento de ICMS Ecológico pelo município. Para tanto, criou a Lei de pagamento por serviços ambientais municipal-PSAM (Nº37/2020).
O programa de PSAM/RPPN passou a valer em 2023 e visa compensar financeiramente aos proprietários de RPPNs que conservarem ou restaurarem as áreas naturais em suas propriedades, promovendo a geração e a manutenção dos serviços ecossistêmicos. O aumento do repasse de ICMS Ecológico ao município virá através da melhoria da qualidade da gestão das RPPNs e do aumento da quantidade de RPPNs no município. Esse é um exemplo concreto a ser considerado pelo poder público em todas as suas instâncias, e já começou a dar resultados. O governo do estado do Paraná, inspirado no programa de PSAM de Antonina, lançou recentemente uma cartilha sobre a criação de programas similares junto aos municípios paranaenses.
Além de iniciativas como a de Antonina, editais com recursos oriundos de compensação ambiental e outros mecanismos financeiros legais, embora de caráter esporádico, também são oportunos para auxiliar as RPPNs em sua manutenção.
Mas o apoio às RPPNs não deve vir somente do poder público, muito pelo contrário. O apoio da iniciativa privada é muito bem-vindo, principalmente de empresas interessadas no estabelecimento de metas relacionadas aos ODS para integrar estratégias ESG (sigla em inglês para “Environmental, Social and Governance“, ou ambiental, social e governança) em conformidade com padrões exigidos em todo o mundo.
A relevância das RPPNs frente aos já mencionados ODS 6, 13 e 15 (dimensão ambiental) e o ODS 3 (dimensão social) são perfeitamente alinháveis à Matriz de Materialidade ESG, uma vez que a grande maioria das empresas que tem definida esta matriz (construída após consulta com stakeholders internos e externos) apresenta como um dos principais anseios materiais a preocupação com o apoio à conservação e proteção da biodiversidade. Desta forma, o investimento em RPPNs pode atender de forma prática e objetiva às aspirações daqueles que são mais importantes para a organização, podendo ser fundamental em diversos aspectos para as empresas, tanto na retenção e atração de talentos como numa grande alavancagem na reputação.
Por fim, cabe aqui um parabéns aos proprietários de RPPNs. Em tempos em que urge uma mudança de consciência mundial, eles puseram em prática a frase do famoso líder pacifista Mahatma Gandhi: “Devemos ser a mudança que queremos ver no mundo”, fazendo a sua parte para defender e conservar o meio ambiente. A eles devemos o nosso apoio.
As RPPNs agradecem, o meio ambiente agradece, e as próximas gerações também.
Marcos Cruz Alves é turismólogo e coordenador da Rede de Portais da Grande Reserva Mata Atlântica.